Jorge Mautner é uma estrela radiante dentro da escuridão das turbulências humanas.
Sua música, despida de elementos dissimulantes, traz uma pureza singular — variações rítmicas que surfam pelas cordas de seu violino e pelo canto rasqueado, atravessando trilhas do iluminismo, da sapiência, do entender o tudo no nada, do entender o nada no tudo.
É absolutamente liberal, zen, axé; um agregador de vertentes, seres e bichos.
Mautner tem uma essência lírica nascida no seio da contracultura, do sonho hippie do “paz e amor”, bandeira que desde então permanece implícita em toda a sua arte.
Quem ouviu o cântico —
A noite é escura / e o caminho é tão longo / que me leva à loucura / andando e dançando / no fio da navalha / eu sou um faquir / eu sou um palhaço e um grande canalha / teu olhar pontiagudo / me corta como um punhal / quero saber de tudo, tudo, tudo / antes do carnaval… —
e caiu em si, rindo ou chorando, sabe do que estou falando.
Nascido no Rio de Janeiro, em 1947, filho de um casal de refugiados judeus iugoslavos que fugiram do nazismo e eram ativistas comunistas, Jorge Mautner cresceu em meio ao universo das ideias políticas, da diversidade cultural e das contradições da existência humana.
Sua primeira manifestação artística deu-se como escritor. Em 1962, aos 16 anos, publicou o romance Deus da Chuva e da Morte, de tom existencialista e experimental. Em seguida vieram Kaos (1964) e Narciso em Tarde Cinza (1966), formando uma trilogia literária que antecipava o estilo libertário e místico que mais tarde caracterizaria sua obra musical.
Se a música de Mautner é território de liberdade e vertigem, sua entrada nesse mundo não poderia ter sido diferente. Ainda jovem, imerso em livros, filosofia e experiências culturais diversas, começou a explorar o som de forma intuitiva e experimental. Nos anos 60, enquanto a bossa nova dominava o cenário brasileiro, Mautner já buscava caminhos próprios — misturando samba, jazz, música folclórica e influências eruditas, tecendo uma linguagem singular.
Inspirado por filósofos como Nietzsche, pelo teatro de Artaud e pelos ideais da contracultura e do movimento hippie, transformou sua obra em fusão de poesia, crítica social e humor, abrindo-se ao improviso, à experimentação e à força do instante criativo. Seu violino estabelece a tênue transcendência entre o clássico e o pagão, o erudito e o cigano.
Em 1972, lançou seu primeiro álbum, Para Iluminar a Cidade, gravado ao vivo no Teatro Opinião, no Rio de Janeiro, e lançado pelo selo Pirata (Philips). O disco traz obras que considero clássicas — Super Mulher, Olhar Bestial, Estrela da Noite, Chuva Princesa e Quero Ser uma Locomotiva —, todas impregnadas de um frescor inovador que ainda hoje persiste.
Dois anos depois, veio Jorge Mautner (1974), produzido por Gilberto Gil. Esses dois álbuns trazem a bagagem essencial para compreender o conceito musical do artista, sendo perfeitos para quem deseja se aproximar de sua verve singular.
O segundo disco foi gravado em estúdio com músicos expressivos:
Jorge Mautner – voz, bandolim e violino;
Nelson Jacobina – voz, violões e guitarra;
Gilberto Gil – violão;
Rodolpho Grani Júnior – baixo;
Tuti Moreno – bateria e percussão em Cinco Bombas Atômicas;
Chiquinho Azevedo – bateria em Cinco Bombas Atômicas e Rock da TV, percussão;
Roberto de Carvalho – piano, piano elétrico, órgão, guitarra e violões.
Nesse disco, a obra ganha vibração sonora e densidade, em contraste com a simplicidade quase acústica do primeiro. Mas em ambos permanece a peculiaridade dos arranjos e a inventividade que só artistas de alma livre conseguem traduzir.
Esse álbum considero perfeito — desde a adolescência o ouço na íntegra, sem uma faixa que me desagrade. Mergulho em todas elas:
Guzzy Muzzy — brincadeira musical de rimas e imagens deslocadas (“será que você tomou cachaça com Xuxu? você me respondeu…”).
Pipoca à Meia-Noite — blues teatral (“um espelho por dia é sua quantia normal”).
Cinco Bombas Atômicas — rock festivo (“cinco bombas atômicas de manhã muito cedo em cima do meu cérebro”).
Ginga da Mandiga — samba eletrônico, puro dengue.
Rock da TV — rock calibrado de luminosidades psicodélicas (“vem, vem este mar que sempre acaba na boca de um imenso abismo”).
Samba dos Animais — celebração festiva da selva e do ser humano.
Herói das Estrelas — estrela solitária da irmandade dos planetas.
Matemática do Desejo — samba (“na matemática do meu desejo, sempre quero mais um, mais um beijo”).
Nababo Ê — samba sincopado (“me movimentando neste círculo quadrado”).
O Relógio Quebrou — salsa dançante teatral (“o relógio quebrou e o ponteiro parou em cima da meia-noite…”).
Salto no Escuro — rock-bolero (“e o amor que é tão raro hoje em dia, em que tudo é tão caro que já virou mercadoria”).
Maracatu Atômico — (“dentro do porta-luvas tem a luva que alguém de unhas negras e afiadas esqueceu de pôr”).
Um Milhão de Pequenos Raios — (“esse menino é um inventor que empina papagaio; fez um que parece um céu azul como um milhão de pequenos raios”).
É importante realçar a parceria com o violonista Nelson Jacobina, que desde o primeiro álbum, em 1972, esteve ao lado de Mautner até sua morte, em 2012.
Juntos compuseram obras fundamentais como Maracatu Atômico, Lágrimas Negras, Rock da TV e O Vampiro.
Jorge Mautner tem uma discografia peculiar, recheada de músicas intrigantes e arrebatadoras, mantendo a singularidade de um canto que desfia o prazer, o saber, o ter e o entender. Louva e prega a arte de viver — e ocupa, por mérito e consistência, um lugar de grande relevância no cenário musical brasileiro.
🎧 Ouça a seleção que preparei no Spotify:
Playlist – Jorge Mautner por Paul Constantinides
Discografia Completa — Jorge Mautner
Compactos e Singles
Radioatividade / Não, Não, Não (1968)
Lágrimas Negras / Samba dos Animais (1969)
Maracatu Atômico (single) (1974)
Filho Predileto de Xangô / Mãe do Ouro (1978)
Álbuns de Estúdio
Para Iluminar a Cidade (1972)
Jorge Mautner (1974)
Mil e Uma Noites de Bagdá (1976)
Bomba de Estrelas (1981)
Antimaldito (1985)
Árvore da Vida (1988)
Pedra Bruta (1992)
Estilhaços de Paixão (1997)
Eu Não Peço Desculpa (com Caetano Veloso) (2002)
Revirão (2006)
Não Há Abismo em Que o Brasil Caiba (2019)
Álbuns ao Vivo e Coletâneas
Ao Vivo Para Iluminar a Cidade (1972)
Coisa de Jorge – Ao Vivo na Praia de Copacabana (2007)
Três Tons de Jorge Mautner (2009)
O Ser da Tempestade (2012)

Nenhum comentário:
Postar um comentário