29/10/2025

Jorge Mautner

 



Jorge Mautner é uma estrela radiante dentro da escuridão das turbulências humanas.
Sua música, despida de elementos dissimulantes, traz uma pureza singular — variações rítmicas que surfam pelas cordas de seu violino e pelo canto rasqueado, atravessando trilhas do iluminismo, da sapiência, do entender o tudo no nada, do entender o nada no tudo.
É absolutamente liberal, zen, axé; um agregador de vertentes, seres e bichos.

Mautner tem uma essência lírica nascida no seio da contracultura, do sonho hippie do “paz e amor”, bandeira que desde então permanece implícita em toda a sua arte.

Quem ouviu o cântico —
A noite é escura / e o caminho é tão longo / que me leva à loucura / andando e dançando / no fio da navalha / eu sou um faquir / eu sou um palhaço e um grande canalha / teu olhar pontiagudo / me corta como um punhal / quero saber de tudo, tudo, tudo / antes do carnaval…
e caiu em si, rindo ou chorando, sabe do que estou falando.



Nascido no Rio de Janeiro, em 1947, filho de um casal de refugiados judeus iugoslavos que fugiram do nazismo e eram ativistas comunistas, Jorge Mautner cresceu em meio ao universo das ideias políticas, da diversidade cultural e das contradições da existência humana.

Sua primeira manifestação artística deu-se como escritor. Em 1962, aos 16 anos, publicou o romance Deus da Chuva e da Morte, de tom existencialista e experimental. Em seguida vieram Kaos (1964) e Narciso em Tarde Cinza (1966), formando uma trilogia literária que antecipava o estilo libertário e místico que mais tarde caracterizaria sua obra musical.

Se a música de Mautner é território de liberdade e vertigem, sua entrada nesse mundo não poderia ter sido diferente. Ainda jovem, imerso em livros, filosofia e experiências culturais diversas, começou a explorar o som de forma intuitiva e experimental. Nos anos 60, enquanto a bossa nova dominava o cenário brasileiro, Mautner já buscava caminhos próprios — misturando samba, jazz, música folclórica e influências eruditas, tecendo uma linguagem singular.
Inspirado por filósofos como Nietzsche, pelo teatro de Artaud e pelos ideais da contracultura e do movimento hippie, transformou sua obra em fusão de poesia, crítica social e humor, abrindo-se ao improviso, à experimentação e à força do instante criativo. Seu violino estabelece a tênue transcendência entre o clássico e o pagão, o erudito e o cigano.

Em 1972, lançou seu primeiro álbum, Para Iluminar a Cidade, gravado ao vivo no Teatro Opinião, no Rio de Janeiro, e lançado pelo selo Pirata (Philips). O disco traz obras que considero clássicas — Super Mulher, Olhar Bestial, Estrela da Noite, Chuva Princesa e Quero Ser uma Locomotiva —, todas impregnadas de um frescor inovador que ainda hoje persiste.

Dois anos depois, veio Jorge Mautner (1974), produzido por Gilberto Gil. Esses dois álbuns trazem a bagagem essencial para compreender o conceito musical do artista, sendo perfeitos para quem deseja se aproximar de sua verve singular.

O segundo disco foi gravado em estúdio com músicos expressivos:
Jorge Mautner – voz, bandolim e violino;
Nelson Jacobina – voz, violões e guitarra;
Gilberto Gil – violão;
Rodolpho Grani Júnior – baixo;
Tuti Moreno – bateria e percussão em Cinco Bombas Atômicas;
Chiquinho Azevedo – bateria em Cinco Bombas Atômicas e Rock da TV, percussão;
Roberto de Carvalho – piano, piano elétrico, órgão, guitarra e violões.

Nesse disco, a obra ganha vibração sonora e densidade, em contraste com a simplicidade quase acústica do primeiro. Mas em ambos permanece a peculiaridade dos arranjos e a inventividade que só artistas de alma livre conseguem traduzir.

Esse álbum considero perfeito — desde a adolescência o ouço na íntegra, sem uma faixa que me desagrade. Mergulho em todas elas:

  • Guzzy Muzzy — brincadeira musical de rimas e imagens deslocadas (“será que você tomou cachaça com Xuxu? você me respondeu…”).

  • Pipoca à Meia-Noite — blues teatral (“um espelho por dia é sua quantia normal”).

  • Cinco Bombas Atômicas — rock festivo (“cinco bombas atômicas de manhã muito cedo em cima do meu cérebro”).

  • Ginga da Mandiga — samba eletrônico, puro dengue.

  • Rock da TV — rock calibrado de luminosidades psicodélicas (“vem, vem este mar que sempre acaba na boca de um imenso abismo”).

  • Samba dos Animais — celebração festiva da selva e do ser humano.

  • Herói das Estrelas — estrela solitária da irmandade dos planetas.

  • Matemática do Desejo — samba (“na matemática do meu desejo, sempre quero mais um, mais um beijo”).

  • Nababo Ê — samba sincopado (“me movimentando neste círculo quadrado”).

  • O Relógio Quebrou — salsa dançante teatral (“o relógio quebrou e o ponteiro parou em cima da meia-noite…”).

  • Salto no Escuro — rock-bolero (“e o amor que é tão raro hoje em dia, em que tudo é tão caro que já virou mercadoria”).

  • Maracatu Atômico — (“dentro do porta-luvas tem a luva que alguém de unhas negras e afiadas esqueceu de pôr”).

  • Um Milhão de Pequenos Raios — (“esse menino é um inventor que empina papagaio; fez um que parece um céu azul como um milhão de pequenos raios”).

É importante realçar a parceria com o violonista Nelson Jacobina, que desde o primeiro álbum, em 1972, esteve ao lado de Mautner até sua morte, em 2012.
Juntos compuseram obras fundamentais como Maracatu Atômico, Lágrimas Negras, Rock da TV e O Vampiro.

Jorge Mautner tem uma discografia peculiar, recheada de músicas intrigantes e arrebatadoras, mantendo a singularidade de um canto que desfia o prazer, o saber, o ter e o entender. Louva e prega a arte de viver — e ocupa, por mérito e consistência, um lugar de grande relevância no cenário musical brasileiro.


🎧 Ouça a seleção que preparei no Spotify:
Playlist – Jorge Mautner por Paul Constantinides


Discografia Completa — Jorge Mautner

Compactos e Singles

  • Radioatividade / Não, Não, Não (1968)

  • Lágrimas Negras / Samba dos Animais (1969)

  • Maracatu Atômico (single) (1974)

  • Filho Predileto de Xangô / Mãe do Ouro (1978)

Álbuns de Estúdio

  • Para Iluminar a Cidade (1972)

  • Jorge Mautner (1974)

  • Mil e Uma Noites de Bagdá (1976)

  • Bomba de Estrelas (1981)

  • Antimaldito (1985)

  • Árvore da Vida (1988)

  • Pedra Bruta (1992)

  • Estilhaços de Paixão (1997)

  • Eu Não Peço Desculpa (com Caetano Veloso) (2002)

  • Revirão (2006)

  • Não Há Abismo em Que o Brasil Caiba (2019)

Álbuns ao Vivo e Coletâneas

  • Ao Vivo Para Iluminar a Cidade (1972)

  • Coisa de Jorge – Ao Vivo na Praia de Copacabana (2007)

  • Três Tons de Jorge Mautner (2009)

  • O Ser da Tempestade (2012)




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